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sexta-feira, 12 de outubro de 2012


AS MENINAS AMERICANAS

em fotografia por  em 12 de out de 2012 às 12:16
Uma fotógrafa estrangeira residente nos estados Unidos da América deparou-se com estranhos pares na cidade de Nova Iorque. E dessa descoberta nasceu uma série tão interessante quanto inquietante.
Ilona_Szwarc_Sophiai_Nova_Iorque_2012.jpg© Ilona Szwarc, Sophia, Nova Iorque, 2012
Ilona Szwarc, fotógrafa polaca residente nos Estados Unidos desde 2008, deparou-se logo nos seus primeiros tempos em Nova Iorque com um estranho fenómeno (pelo menos, para um não americano). Nas ruas da cidade cruzava-se por vezes com estranhos pares, binómios menina/boneca, em que a segunda era uma cópia miniatura, algo rechonchuda, da primeira. Partilhavam cores de olhos e cabelo, penteados e roupas.
A raíz desta ocorrência parecia centrar-se, em Nova Iorque, numa loja da marcaAmerican girls na quinta avenida. A empresa desenvolvera um conceito alternativo de boneca, em que esta não era uma transposição directa de um determinado ideal feminino que se impõe universalmente a todas as crianças. As bonecas da American Girls, aparte uma linha que reproduz figuras históricas nacionais, são brinquedos personalizados. E caros. Desenhadas à imagem das donas, cada uma custa à partida cerca de cem dólares, e depois há que acrescentar extras (roupas, móveis e acessórios para os penteados).
Desejando retratar estes estranhos pares, e não o querendo fazer furtivamente, acabou por contactar directamente com as crianças e os seus pais obtendo o almejado consentimento. A abordagem que pretendia passava por fotografar os pares no seu ambiente familiar, em condições relativamente controladas, e fazê-lo com recurso a uma câmara de médio formato. Não foi complicada a colaboração de meninas e pais em sessões com alguma preparação e demora. Muitas crianças revelaram-se aspirantes a modelos e a atrizes ( ou simplesmente aspirantes a celebridades), perspectiva compartilhada pelos progenitores.
A Ilona Szwarc, desde o início, interessaram-lhe vários aspectos. O par, menina e réplica, formava desde logo um assunto visualmente interessante. As bonecas, concebidas para serem diferentes entre si, acabavam na prática por serem muito semelhantes, potenciando o carácter serial das imagens. A forte ligação das crianças aos seus avatares plásticos (e aos seus acessórios) e os valores que se jogavam nesta relação pareciam-lhe reveladores da forma como os padrões comportamentais e os estereótipos de género são incutidos socialmente, e do seu papel na construção da identidade.
O olhar de Szwarc, apesar de frio (fotografa a cores as suas modelos quase com a mesma empatia com que o par Bernd e Hilla Becher fotografavam a preto e branco os seus edifícios industriais anónimos), não é neutro. Sem cair em encenações elaboradas, como as da fotografia de moda ou de alguns retratos de Annie Leibowitz, por exemplo, percebe-se facilmente que não estamos verdadeiramente perante fotojornalismo. O fenómeno não foi criado pela fotógrafa, mas as situações criadas para o retratar foram. É ela que escolhe os cenários (sempre num ambiente familiar às crianças), as poses e as condições gerais. Cada criança escolhe uma indumentária das que partilha com a boneca, a câmara é forçosamente enfrentada sem sorrisos (excepto quando as meninas usam aparelho ortodôntico).
Ilona_Szwarc_Desiree_b_Nova_Iorque_2011.jpg© Ilona Szwarc, Desiree, Nova Iorque, 2011
Ilona_Szwarc_Desiree_Nova_Iorque_2011.jpg© Ilona Szwarc, Desiree, Nova Iorque, 2011
Ilona_Szwarc_Rylan_Nova_Iorque_2011.jpg© Ilona Szwarc, Rylan, Nova Iorque, 2011
Ilona_Szwarc_Lexi_Nova_Iorque.jpg© Ilona Szwarc, Lexi, Nova Iorque, 2012
Ilona_Szwarc_Tiffani_Amber_Nova_Iorque_2011.jpg© Ilona Szwarc, Tiffani-Amber, Nova Iorque, 2011
Ilona_Szwarc_Gilliani_Nova_Iorque_2011.jpg© Ilona Szwarc, Gillian, Nova Iorque, 2011
Ilona_Szwarc_Sidney_Connecticut_2011.jpg© Ilona Szwarc, Sidney, Conneticut, 2011
As imagens da série American Girls resultam perturbadoras. As bonecas, ao invés de reforçarem a singularidade da portadora, parecem anulá-la. Apesar da personalização, parecem todas iguais e as meninas ao compartilhar referências visualmente fortes desumanizam-se. Plastificam-se.
Olhando as fotografias, pelo lado da memória cinéfila não nos vêm delas referências duma infância aventurosa (como os Goonies), nem de abordagens mais cândidas ou melodramáticas (como o Aniki Bóbó, de Manoel de Oliveira). A estas imagens de Ilona Szwarc muito mais rapidamente associamos filmes do universo do macabro e do terror (como Village of the Damned, de jonh Carpenter, ou a série de filmes com o boneco Chucky), ou o estranho Pretty baby, de Louis Malle, onde uma pré-adolescente Brooke shields encarna uma menina prostituta que se envolve com um fotógrafo.
The_village_of_the_damned_imagem_da_rodagem_1995.jpgJohn CarpenterThe village of the damned, imagem da rodagem, 1995
Há depois uma estranheza que deriva da base documental da série. Ilona Szwarc detectou estas crianças que eram sensíveis ao apelo de ter uma cópia de si mesmas, e detectou a invulgaridade do fenómeno. Associou esta perturbação a uma singularidade americana no processo social de construção da identidade feminina. Porém, vendo as suas “american girls”, penso que a coisa nos inquieta por ser mais do que isso. Praticamente todos os brinquedos de menina, desde os mais rudimentares e étnicos aos mais recentes e mais sofisticados, têm este papel de formatar comportamentos de acordo com um padrão, facilitando as interações sociais. As meninas brincam reproduzindo os comportamentos “correctos” das mulheres, sejam eles quais forem num determinado contexto. Nalguns casos criam bebés e limpam as casas, noutros mudam de penteados e roupas e namoram com bonecos louros e fúteis. Essa reprodução, essa formatação, tem um papel facilitador na relação com o Outro. Quem aprende a agir conforme o padrão “correcto” tem a sua aceitação garantida num grupo. Ora o que há de verdadeiramente inquietante nas “American girls” é o mergulho no narcisismo, o encerramento no Eu. As interações com as bonecas são interações consigo mesmas, mudar o penteado destas é mudar o seu próprio penteado.
O que nos perturba mais na série de Ilona Szwarc é a visão destas crianças cuja relação com os outros passa sobretudo por enfatizar a sua auto-imagem e o seu isolamento. Crianças cheias de si mesmas. Uma das meninas modelo de Szwarc, descrevendo a sua boneca, escreveu: “ela é fixe, exactamente como eu!”.
julioribeiro
Artigo da autoria de Júlio Assis Ribeiro.
Fulano desfocado, despachado e de difuso sentido de humor. Adora falar de si na terceira pessoa e discorre sobre toda uma variedade de assuntos, como se percebesse de algum. Gosta de imagens, de histórias e de parêntesis, e deu-lhe agora para isto....
Saiba como fazer parte da obvious.